Saturday, January 24, 2009

Não és novo demais para brincar com o karma?


De vez em quando lembro-me da sua existência e faço contas aos anos em que ela me tem feito companhia: são vinte seis. Em algumas dessas vezes paro o que estou a fazer e vou olhar para ela. Paro junto ao espelho e começo por afastar os primeiros cabelos da franja para a ver, percorro-a com os olhos pelo comprimento todo da minha testa. De seguida faço uma curva à esquerda e começo a subir enquanto os meus dedos continuam a ziguezaguear para ir desviando o cabelo que encobre a cicatriz gigante que me preenche a cabeça. Certa altura tenho que parar porque a minha visão não tem potência suficiente para alcançar a parte de trás da minha cabeça, por isso, nunca chego a ver-lhe o fim. Não digo que ela cresceu comigo porque já nasceu grande mas eu certamente cresci com ela, escondida é certo, mas cresci.
Foi nos primeiros meses de 1983 quando aconteceu, num domingo normal na despreocupada vida de uma criança de cinco anos e meio. O meu pai deixou-me ao inicio da tarde numa festa de um amigo, do qual não me recordo do nome e que vivia na Rua da Junqueira. Lembro-me da sua casa e de alguma das divisões desta, de sair dela e me despedir dos anfitriões, de começar a descer as escadas com o meu pai e a minha irmã rumo ao carro. O que nunca contei a ninguém até hoje é que trazia num dos meus bolsos um carrinho que roubei ao meu amigo.
A imagem que se segue sou eu a acordar deitado numa maca e com um mundo inteiro de olhos a olhar para mim. De seguida, entrei numa ambulância. A minha irmã diz que durante a viagem do sitio do acidente até ao hospital eu ria à gargalhada. Adorava lembrar-me desse meu ataque riso compulsivo mas não consigo, a imagem que guardo dessa viagem sou eu deitado na maca a olhar para cima e ver a Rita ao colo do meu pai, vestido com um loden verde até aos pés a dizer ao condutor para se despachar. Depois disso lembro-me de passar a noite deitado a ver todo de baixo para cima e de me raparem o cabelo para me poderem voltar a colocar o escalpe. Devido ao perigo de hemorragias internas mantiveram-me acordado durante todo o tempo que o cirurgião precisou para cozer os mais de cento e quinze pontos (deixaram de contar a partir daí) que foram precisos para voltar a fechar a minha cabeça. Durante todas essas horas fui conversando com a minha mãe (que não largou a minha mão durante um único segundo) e com o médico ao mesmo tempo que este me cozia. Lembro-me de acordar no dia seguinte na cama da minha irmã e ver um dia de céu azul pela janela, de estar radiante por ter no meu pulso uma pulseira do hospital com o meu nome (não sei porquê achei piada aquela merda). Acima de tudo, lembro-me do olhar aliviado dos meus pais por terem acordado daquele pesadelo e verem que apesar daqueles pontos todos que me preenchiam a cabeça eu continuava igual ao que sempre fora. Outras duas cenas desse episódio que também me ficaram gravadas na memória foram: a enfadonha e demorada tarde em que me tiraram os pontos e a manhã em que voltei à escola. O regresso às aulas foi algo estranho, cheguei à sala de aula e já estavam todos sentados e eu por breves instantes fiquei em pé diante de mais de duas dezenas de crianças enquanto estas me contemplavam num misto de olhares assustados e desconfiados, provavelmente a perguntando eu ainda seria como eles enquanto inspecionavam a cicatriz monstra que me preenchia a cabeça. Depois disso voltei para o meu lugar na sala de aula da Eduarda e voltei a misturar-me com os outros, o meu cabelo voltou a crescer, muito rápido como hoje em dia, e escondeu esta minha enorme marca. Ficou apenas visível uma cicatriz pequena ( neste caso pequena é subjectivo) junto à minha sobrancelha esquerda que eu achava imensa piada porque era, e obviamente continua a ser, um J invertido. Fui acompanhado frequentemente durante os dois anos que se seguiram por dores de cabeça e que felizmente desapareceram. Acho que tive uma sorte incrível por não ter ficado desfigurado e da cicatriz ser imperceptível para quem não sabe que a tenho. O carro em que seguíamos ficou totalmente destruído e eu fui o único que teve ferimentos graves. Os pontos da minha irmã e do meu pai somados correspondiam apenas ao pontos do meu J invertido; a minha cicatriz pequena. Até hoje guardo outra imagem na minha memória vista de uma posição diferente das outras: não de baixo para cima mas de cima para baixo. Os meus olhos alguns metros acima do chão observando-me e olhando para o meu corpo e o da minha irmã a dormir profundamente no banco do carro. Até hoje não sei de onde me vem essa imagem; se a sonhei ou se o meu espírito chegou mesmo a sair do meu corpo. Não sei mesmo.
Lembrei-me de escrever sobre esta memória algo cinzenta da minha vida não por estar de mal com ela, porque estou longe de estar, mas apenas porque esta manhã voltei a afastar os meus cabelos para espreitar a minha cicatriz com mais de um palmo de comprimento e cheia de curvas e contra-curvas e tive vontade de contar esta pequena parte da minha história de vida. Às vezes, e por acreditar nessas coisas, penso se tudo isso que me aconteceu não terá sido mau karma da minha parte. Talvez se eu não tivesse desfalcado a garagem de carrinhos do meu amigo, se não me tivesse apoderado do que era seu nada daquilo me teria acontecido; aquele camião sem reflectores não estaria estacionado onde estava, não nos teríamos enfaixado na sua traseira e eu não teria uma boa história para contar, é que, a brincar a brincar aprende-se a conduzir a sério. A história da minha vida, essa ainda tem que ser vivida...

1 comment:

Anonymous said...

Durante anos e anos a última imagem,na minha cabeça,antes de adormecer,era a minha entrada no hospital,sem saber o que iria encontrar,em que estado você, a Rita e o Pai estariam !Logo que entrei no S.José,fui arrastada por uma médica que,depois de me identificaar, me deu um calmante e me avisou que eu teria a pior noite da minha vida. E foi.Mas acabou bem,com vocês vivos e em casa. Love Mommy