- És feliz? - perguntou-me ela no último mês de Julho enquanto estávamos deitados na minha cama e a dividíamos pela terceira vez. Fiquei calado, a pensar na resposta aquela pergunta que já tinha feito a mim mesmo milhares de vezes durante esta minha existência e para qual nunca tinha conseguido obter qualquer resposta, nem mesmo uma incompleta.
- Parece que estás sempre noutra, às vezes acho que é só o teu corpo que aqui está comigo, é como se a tua alma andasse lá por fora a deambular. Parece-me sempre que tens alguma coisa entalada aí dentro para pôr cá fora. Basta olhar para as coisas que fazes, parece que têm sempre alguma mensagem que só tu entendes e mais ninguém percebe. Acho que devias partilhar mais, expor mais o que se passa aí dentro. Nota-se que tens muito para dar mas que não o queres fazer e é pena: para mim, para ti e para todas as outras pessoas que te querem conhecer e tu não deixas. Mostras só a capa do livro, nunca te abres, nunca viras as tuas páginas. – acrescentou ela enquanto eu continuava deitado a olhar para os contornos escuros do meu quarto e suas mensagens escondidas, ao mesmo tempo que matutava na questão que ela me tinha colocado
- Às vezes sou feliz. – respondi-lhe secamente.
- Isso é um bocado vago como o são todas as tuas respostas a perguntas dirigidas a esse teu mundo pessoal e íntimo que tu tanto prezas e defendes não deixando ninguém aproximar-se dele. Esse teu mundo de fantasia é muito bonito mas é só teu, nunca o partilhas com ninguém a não ser tu mesmo – replicou ela ligeiramente irritada.
Depois de alguns minutos de silêncio disse-lhe: - Sabes, não me considero uma pessoa especialmente feliz, pelo menos não sou daquelas que irradiam felicidade por todos os poros. Nunca fui aquela criança que corre pela casa aos gritos e aos saltos, ficava horas a brincar sozinho muito sossegado no meu quarto a fazer montanhas e grutas com os meus anoracks ou a fazer corridas de calendários de pilotos de Fórmula 1. Sempre gostei de fazer coisas sozinho, talvez seja mesmo um bocado solitário e uma pessoa melancólica e nostálgica. Desde miúdo que gosto de sonhar, imaginar e idealizar coisas que muitas vezes são impossíveis ou muito difíceis de se concretizarem logo e como consequência espeto-me uma data de vezes. Já estou habituado a esses estouros mas quando algo corre bem e como quero sou feliz, como também o sou quando acabo um desenho que gosto ou quando escrevo alguma coisa que soa bem quando a acabo de ler por mais triste que sejam as palavras lá escritas. Já me disseram várias vezes que tenho uma atracção pelo abismo, começo a achar que é verdade e talvez por isso não viva todos os dias feliz mas também não me considero um ser infeliz, longe disso, há tantas coisas que me dão alegria e não são só as coisas do meu mundo mas também deste em que vivemos eu, tu e todos os outros que tu dizes que me querem conhecer mas a quem se calhar eu não me quero apresentar. Já tinhas pensado nisso desta maneira? - contra ataquei eu.
- Não, não tinha. – respondeu ela baixo num tom doce mas levemente triste e logo acrescentou: - Tenho pena que tenhas tanta dificuldade em te abrir comigo, a te apresentares ou a mostrar-me esse teu lado escondido porque gosto muito de ti.
- Eu também gosto de ti mas há coisas que se calhar eu não quero partilhar com ninguém, ou pelo menos para já. – finalizei eu. A conversa acabou assim, tão depressa como tinha começado, adormecemos. Era verdade, eu também gostava dela mas não o suficiente para me fazer sair detrás dos arbustos e me expor. Foi a última vez que dormimos juntos e nos vimos, ela entretanto em Agosto partiu e foi viajar por esse mundo fora para longe deste rectângulo onde estamos plantados. Ainda falámos ao telefone umas vezes, ela mandou-me umas mensagens antes da sua partida às quais não respondi. Não me apetecia estar com ela nem que ela me confrontasse com as dualidades da minha vida. Tinha-me também desinteressado pelo interesse dela em mim e não queria de modo algum mostrar-lhe mais do que já tinha mostrado. Ela merecia estar com alguém que realmente quisesse abrir o seu livro, partilhá-lo, e eu estava longe de lhe conseguir proporcionar isso. Hoje de manhã quando acordei lembrei-me daquela pergunta que ela me fez na última noite que estivemos juntos. Abri os olhos como ela perguntou se eu era, olhei para a minha mesa que exibe uma pintura muito longe estar acabada e na qual não toco há uma semana, fechei o meu livro que jazia em cima dela, saí para a rua e fui viver feliz.
2 comments:
ô rapazinho complicado!!
Hoje em dia poucas pessoas conseguem abrir o seu livro.
E o melhor, ou pior, é que a maioria exige que as outras pessoas abram o seu livro, mas não são capazes de abrir o próprio.
Complicado? Muito.
As coisas são muito melhores às claras, são mais apreciadas. São muito melhores se forem simples. Aliás, tudo é bastante simples na verdade, se soubermos o que queremos.
O meu maior problema é esse aliás -parecer cega à complexidade da maioria das pessoas.
"Mas então afinal porquê?", pergunto muitas vezes, achando q por trás está a resposta mais simples. Para mim seria, pelo menos.
Talvez assim não perdesse algumas horas de sono como tenho perdido ultimamente.
Sim, a beleza da vida às vezes está na simplicidade das coisas e não na complexidade destas. É exactamente como no velho cliché "Less is more". O mais difícil é alinhar duas simplicidades e combiná-la numa.
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